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UMA CENA HISTÓRICA

 

A revolta da esquadra explodiu a 6 de setembro. A 27 de outubro foi Carneiro desligado do corpo de bombeiros. Floriano deu-lhe a chefia de um largo trecho do litoral. Levantou na Igrejinha a sua guarita de sentinela da costa. Foi a 16 de novembro que o marechal manou chamá-lo de novo.

Terríveis dias tinham sido aqueles de canhoneio da armada, que lembrava aos veteranos do Paraguai a barranca pestilenta de Curuzu, de sobressalto da cidade, rolando em terra a fuzilaria, trepada aos morros a população angustiada que assistia, do seu anfiteatro penhascoso, ao espetáculo inédito de uma marinha de ferro a bombardear um governo impassível. Entre o governo e a marinha havia as fortalezas, as baterias e os regimentos estendidos ao longo do cais, e, risonha tropa cujo entusiasmo contagioso vibrava pela capital em eco de festa, os estudantes...

Na máscara do marechal nenhuma linha tremia. Recebeu, com um ar sério, o coronel Gomes Carneiro. Os oficiais, que momentos antes comunicavam ao ditador as notícias das operações, deixaram-nos à sós. Floriano teve o cuidado de fechar as portas. E voltando-se, brusco, abalou o amigo com estas palavras:

- Carneiro, não é o marechal que lhe fala, é Tibúrcio...

Na parede fronteira, um retrato de Deodoro, amplo, dourado, triunfal, testemunhava a cena histórica.

Diante do majestoso antecessor, seu compadre, seu fraternal amigo, depois seu adversário – Floriano parou, ereto, como se o generalíssimo lá estivesse vivo, a envolvê-los com o agudo e chamejante olhar que dava à sua austeridade de velho guerreiro um lampejo de cólera divina. E sorriu vagamente, lembrando-se do bilhete em que profetizava aquele instante supremo: “se algum dia a República perigar será nas mãos de Carneiro que se há de salvar...”

O homem extraordinário raras vezes se emocionava. Nunca lhe coloriu a face baça ou acendeu a vista mortiça. O seu gesto era preguiçoso, o seu passo arrastado, a sua voz mansa, o seu ar distraído e manhoso. Como que a guerra o insensibilizara, o perigo e a glória, as honras e as lutas, esgotando-lhe as energias vitais, o tornavam indiferente a homens e ideias... Pois Floriano – e Carneiro observou-o com espanto – não dissimulava a sua agitação enraivecida. As palavras, de ordinário, tão calmas, brotavam-lhe ardentes e irritadas, como se o apunhalasse uma grande mágoa. Sobre a mesa, havia mapas desdobrados, telegramas amarfanhados, a desordem de um escritório momentos antes resolvido pela impaciência de um chefe ansioso.

E expôs, calorosamente, a situação. O governo não podia distrair tropas, que tomassem o passo ao exército federalista, cujo plano tinha a audácia – assombrosa! – de uma marcha, em grande estilo, sobre a capital da República. Sim. Dez mil homens acabavam de romper, pela serra de Santa Catarina, rumo certo a Itararé. A 30 de setembro caíra Desterro e implantara-se no Estado uma junta revolucionária. Portanto, o movimento sedicioso se estendia já, das serras do Rio Grande às margens do Rio Negro. Partira o general Argolo, para enfrentar Gumercindo Saraiva no caminho de Blumenau. Iria dirigir o distrito, em Curitiba, o general Pego Júnior. Mas Floriano confiava em Carneiro. Se Tiburcio fosse vivo – repetiu, comovido – o herói do Chaco lhe teria dito: Chame o coronel Gomes Carneiro, ele impedirá a marcha de Gumercindo... É convincente, apertando as mãos do amigo:

- Carneiro, será você o salvador da República. Não é um apelo ao seu dever de militar, mas ao companheiro das horas decisivas... Lembre-se do nosso Tiburcio... Você me salvará.

Não pestanejou. – Marechal, estou pronto. Partirei imediatamente.

- Tem carta branca, continuou o ditador. Só não lhe posso dar soldados... nem material. Mando contra Gumercindo e o seu Exército o coronel Gomes Carneiro. E basta.

- Marechal – e a face de Gomes Carneiro resplandeceu – embarcarei em 48 horas. V. Ex. confiou em mim; eu lhe afirmo, sobre os galões do meu punho, que a coluna inimiga não passará.

Floriano encostou-se à mesa, para contemplá-lo melhor. O coronel perfilou-se, a mão esquerda, com a sua cicatriz de Estero Bellaco, crispada cobre o punho da espada – a espada de aço que lhe dera Tiburcio – e repetiu:

- Não passará!

 

(Excerto do Capítulo IX do livro “Gomes Carneiro, o general da República” de Pedro Calmon – Rio, 1933)

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